Defensores, invasores e jornalistas
OPINIÃO

Defensores, invasores e jornalistas

Imagine o desafio que enfrentam todos os dias os que defendem os direitos humanos em um país que tem medo até de usar essa expressão e que vive a desigualdade a ponto de tremer diante da possibilidade de todas as pessoas – sem exceção – terem direitos.
O relatório “Na linha de frente: violações contra quem defende direitos humanos”, lançado na quarta-feira passada, dá a medida da vulnerabilidade de mulheres e homens que enfrentam a injustiça e a ilegalidade no país: entre 2019 e 2022 foram registrados 1.171 casos de violência contra os defensores de direitos humanos no Brasil. Entre eles, 169 assassinatos.
O estudo, feito pelas ONGs Justiça Global e Terra de Direitos, teve o cuidado de definir quem são os defensores: pessoas, grupos, povos, movimentos sociais ou qualquer coletividade que atue contra todas as violações de direitos e em defesa dos direitos humanos – sejam eles individuais ou coletivos (políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais).
Um exército pela paz e o bem viver: entre os que sofreram violência, 78,5% defendiam a terra, o território e o meio-ambiente; já os indígenas correspondem a quase um terço das vítimas de assassinato: 50 casos, 17 deles em 2022.
Os pesquisadores, que se debruçaram sobre relatórios de diversas organizações, notícias de jornais, redes sociais e dados de entidades como o Conselho Nacional de Direitos Humanos e o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, também buscaram os agentes agressores. Em 44,4% dos casos foi impossível identificá-los, até por falta de investigações policiais; em 32,7% das violações, o responsável foi um agente privado – garimpeiros, fazendeiros, seguranças; no restante dos casos os agressores foram a polícia. Como pano de fundo, conflitos por terra, invasões, grilagem, exploração ilegal de minérios e madeira.
Esta é a realidade que o Congresso ignora ou endossa com iniciativas como o Marco Temporal, CPI do MST – e agora, possivelmente, a CPI das ONGs – investigando as vítimas e não os violadores de direitos. Um outro levantamento publicado na terça-feira, o dossiê “Invasores”, feito pelos jornalistas do “De Olho nos Ruralistas”, dá uma mostra de quão íntimas são as relações entre invasores e congressistas: 42 políticos e seus familiares são titulares de imóveis em sobreposição a terras indígenas. Em bom português, ocupam áreas que não lhes pertencem, protegidas pela Constituição Federal.
Os que defendem o sagrado direito à propriedade – um cânone tão intocável no Brasil quanto o silêncio que cerca as mortes dos defensores de direitos humanos – estão apenas mentindo em tribunas, jantares e coletivas de imprensa. Não pode existir cobertura neutra enquanto defender que todas as pessoas têm direito à vida, à dignidade, a não sofrer maus tratos nem ameaças for visto como subversão.
Neste ano, o relatório da Linha de Frente passou a monitorar também jornalistas e comunicadores que trabalham, sob risco de vida, para disseminar informações de promoção e defesa dos direitos humanos. E incluiu a desinformação no contexto da violência, pelas ofensas e hostilidades criadas por notícias falsas contra os defensores de direitos humanos. Quatro exemplos são citados: o da vereadora Marielle Franco, que teve a reputação atingida, depois de assassinada, por gente como a desembargadora Marília Castro Neves, que a chamou de “defensora de bandidos”; as perseguições e ameaças contra a pesquisadora Débora Diniz e o ex-parlamentar Jean Wyllys, ambos vítimas de campanhas de ódio que tiveram que deixar o país; e o MST, há décadas alvo de mentiras e desinformação, inclusive propagadas pela dita imprensa profissional, com o objetivo de criminalizar o movimento.
Depois de 40 anos de profissão, em que convivi, felizmente, com muitos defensores e defensoras de direitos humanos – pessoas que coloco no alto da minha “pirâmide social” -, não tenho dúvida de que a Agência Pública fez a escolha certa desde sua fundação: o compromisso intransigente com os direitos humanos, nosso farol entre tantas dúvidas e riscos que cercam o jornalismo neste país tão desigual.
 
Marina Amaral é diretora executiva Agência Pública
Edição:Maryhanderson Ramos Ovil

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