O Preconceito e a Discriminação como Obstáculos ao Sucesso Acadêmico de Estudantes Negros
A análise das limitações e das potencialidades para o bem-viver de estudantes negros e pardos no contexto universitário foi o cerne de um estudo realizado na USP
Vivência Acadêmica
O desenvolvimento do projeto se deu em quatro etapas meticulosamente estruturadas. A primeira consistiu no levantamento bibliográfico, abrangendo artigos, dissertações, teses e livros sobre relações étnico-raciais, programas de ação afirmativa, políticas de permanência estudantil, bem-viver e o bem-estar subjetivo (BES). Esta fase inicial proporcionou a base teórica necessária para o entendimento profundo das questões a serem investigadas.
Na segunda etapa, foi realizado um estudo transversal, com a aplicação da Escala de Bem-Estar Subjetivo em dois momentos distintos, abrangendo estudantes de diferentes categorias raciais: negros, brancos, amarelos e indígenas. Este procedimento possibilitou a análise comparativa entre os diversos grupos, de modo a mapear as variáveis que influenciam o bem-estar subjetivo no ambiente acadêmico.
A terceira etapa envolveu entrevistas individuais com os estudantes negros identificados na fase anterior. O objetivo principal foi captar elementos da experiência vivida no contexto universitário e identificar fatores que contribuem ou dificultam o bem-viver desses alunos. A análise qualitativa dessas entrevistas visou entender as nuances do cotidiano acadêmico desses estudantes, especialmente no que tange ao enfrentamento de desafios institucionais e sociais.
A quarta etapa foi composta por grupos focais, realizados com os mesmos estudantes negros, previamente identificados nas etapas anteriores. O intuito desta fase foi explorar, de forma aprofundada, as concepções de bem-viver desses indivíduos, investigar como lidam com as situações de preconceito e discriminação no ambiente acadêmico, e compreender o suporte social fornecido por suas famílias, tanto para garantir o bem-estar quanto para assegurar a continuidade dos estudos.
O pesquisador salienta que os resultados obtidos proporcionaram uma compreensão holística das dimensões pessoais, contextuais e institucionais que impactam a saúde mental e a qualidade de vida acadêmica dos estudantes negros da USP. Tais dimensões, segundo Santos, são fundamentais para a gestão e a governança universitária, principalmente no que diz respeito à formulação e implementação de políticas de permanência estudantil. Essas políticas devem ser capazes de minimizar os fatores que contribuem para o abandono dos estudos e o fracasso acadêmico, promovendo um ambiente mais inclusivo e propício ao sucesso de todos os alunos.
Apesar dessas evidências, o pesquisador critica o fato de que nenhum dos critérios atualmente adotados para medir o grau de excelência das instituições de ensino superior, sejam os rankings nacionais ou internacionais, inclua aspectos humanos essenciais da vida acadêmica, como a cultura universitária, as relações interpessoais, e a qualidade do ambiente de ensino e pesquisa. Através deste projeto, foram gerados dados e informações que reforçam a importância de um debate mais aprofundado sobre a saúde mental, a qualidade de vida acadêmica e o suporte social oferecido aos estudantes no contexto universitário.
No que tange aos limites impostos ao bem-viver dos estudantes negros na USP, o pesquisador aponta que a persistente desigualdade étnico-racial e as situações de preconceito e discriminação presentes na universidade tornam a experiência acadêmica, bem como o processo de adaptação, significativamente mais árduos.
A desigualdade étnico-racial, que se manifesta de forma contundente nas condições sociais de vida e de estudo dos estudantes negros, cria um ambiente de insegurança e alimenta um profundo sentimento de exclusão, prejudicando, assim, a vivência acadêmica desses alunos. Este fator estrutural, que se reflete em desvantagens tanto no plano material quanto no simbólico, intensifica as dificuldades enfrentadas por esses estudantes na jornada acadêmica.
O preconceito e a discriminação, por sua vez, ao impactarem diretamente a saúde mental, geram sentimentos de humilhação social e de não pertencimento, agravando ainda mais os desafios da adaptação acadêmica. Esses elementos, que são obstáculos invisíveis, mas devastadores, não apenas prejudicam o desempenho acadêmico, mas também comprometem o desenvolvimento pessoal e emocional dos indivíduos, criando um ciclo vicioso de marginalização e estigmatização.
Por outro lado, ao abordar as possibilidades para um bem-viver mais pleno, o pesquisador destaca a relevância do suporte social oferecido pela família, pelos coletivos estudantis, assim como pelos programas de permanência estudantil e pelos serviços de saúde mental disponíveis na universidade. Estes fatores de apoio, ao oferecerem uma rede de amparo emocional e material, constituem elementos essenciais para a promoção do bem-estar acadêmico e para a superação das dificuldades impostas pelo contexto discriminatório e desigual.
Como regra geral, a família desempenha um papel essencial no suporte afetivo e emocional dos estudantes, além de fornecer, quando possível, apoio material e financeiro. Esse amparo familiar, ainda que muitas vezes condicionado às limitações econômicas, serve como um pilar fundamental na manutenção do equilíbrio emocional e psicológico dos estudantes negros. Por outro lado, os coletivos estudantis se apresentam como redes de suporte emocional e instrucional, funcionando como estruturas de acolhimento e estabelecimento de vínculos de amizade e confiança. Esses espaços proporcionam um suporte imprescindível, especialmente no enfrentamento das situações de preconceito e discriminação, criando uma base sólida para que os estudantes possam lidar com os desafios diários no ambiente acadêmico.
Os programas de permanência e os serviços de saúde mental da universidade, por sua vez, oferecem suporte material, financeiro e instrucional. Este conjunto de recursos facilita a permanência dos estudantes no curso universitário e auxilia diretamente na adaptação ao ambiente acadêmico, permitindo que se sintam mais seguros e integrados ao contexto educacional.
“O bem-viver dos estudantes negros na USP exige, portanto, um engajamento coletivo e contínuo de todos os segmentos da universidade — estudantes, professores, funcionários e gestores —, assim como de seus programas e serviços. Trata-se de uma ação conjunta voltada para a proteção da dignidade, a valorização da diversidade e a promoção da igualdade de oportunidades no ambiente acadêmico”, destaca o pesquisador. Com esse objetivo em mente, ele e sua equipe elaboraram um conjunto de recomendações destinadas a promover um ambiente acadêmico mais inclusivo e saudável na USP. Entre essas propostas, incluem-se: o enfrentamento das situações de preconceito e discriminação no ambiente acadêmico; o incentivo ao engajamento dos professores na proposição de atividades de integração e apoio acadêmico aos estudantes negros; o fortalecimento dos coletivos estudantis, com a criação de formas de financiamento que consolidem e ampliem suas atividades; o estreitamento de laços com as famílias dos estudantes; e, por fim, o incremento financeiro dos auxílios de permanência estudantil, com o intuito de garantir maior apoio àqueles que enfrentam dificuldades para se manter na universidade.
Saúde Mental
A fase final do projeto contemplou a difusão e popularização do conhecimento gerado, com vistas à internacionalização dos resultados. Essa disseminação se deu por meio de seminários, apresentação de trabalhos em eventos acadêmicos e congressos científicos, além da publicação de manuscritos na forma de artigos e capítulos de livros. O projeto também se fez presente na esfera digital, por meio da veiculação de conteúdos no blog dedicado à pesquisa.
Um momento de grande relevância ocorreu em janeiro deste ano, quando o professor Santos e quatro integrantes do grupo de pesquisa realizaram uma visita à University of Texas – Austin, nos Estados Unidos, com o intuito de conhecer de perto os serviços e programas oferecidos pelo Counseling and Mental Health Center (CMHC), centro dedicado à promoção da saúde mental da população universitária. Além de Santos, participaram da visita os pesquisadores Karen Cristine Matos Santana, Danrley Pereira de Castro, Cássia Virgínia Bastos Maciel e Carlos Vinicius Gomes Melo.
A programação da visita foi ampla e incluiu apresentações sobre o projeto e seus resultados, direcionadas aos profissionais de saúde e assistência social da UT-Austin. Além disso, os pesquisadores participaram de visitas monitoradas às instalações do University Health Services (UHS), responsável pelo atendimento médico ambulatorial de baixa e média complexidade, e ao Gregory Gymnasium, centro esportivo e de atividades físicas da universidade.
A agenda também incluiu reuniões produtivas com gestores, profissionais e estudantes estagiários de diversos programas de apoio à saúde mental, entre os quais se destacam: o programa Mindful Eating, focado em transtornos alimentares; o SHIFT, voltado para a prevenção do uso abusivo de álcool e outras substâncias; o Recovery Living Learning Community, que oferece suporte à recuperação de dependentes químicos; o CARE, que oferece aconselhamento psicológico; o Mental Health Assistance and Response Team, responsável por intervenções em crises e emergências de saúde mental; o Voices Against Violence, que combate o assédio moral, sexual e a violência, além de apoiar as vítimas; e o Diversity Counseling and Outreach Specialists, que luta contra o preconceito e a discriminação étnico-racial e de gênero, prestando apoio às vítimas dessas formas de opressão.
“Como indicadores da produção científica resultante do JP2, destaco a conclusão de três dissertações de mestrado e de uma tese de doutorado; a premiação de dois trabalhos apresentados em congressos, um internacional e o outro nacional; a publicação de nove resumos de trabalhos nos anais de congressos; a publicação de um capítulo de livro, com a aprovação de outros dois capítulos para publicação; a publicação de quatro artigos em revistas científicas e a aprovação de três artigos para publicação”, enumera Santos, evidenciando os frutos acadêmicos gerados pela pesquisa.
Com o término do projeto em meados deste ano, o pesquisador prossegue com o estudo intitulado “Saúde mental, marcadores sociais da diferença e sucesso acadêmico: investigação dos efeitos da pandemia da COVID-19 sobre estudantes universitários”, uma continuidade natural que visa aprofundar a compreensão sobre os impactos da pandemia no desempenho e bem-estar dos estudantes, com foco nas desigualdades sociais e raciais presentes nas universidades.